quarta-feira, 11 de junho de 2008

Acaso

Acaso

O relógio desperta. Meus olhos, ainda adormecidos, enxergam a luz do sol. O corpo sonolento aos poucos reage. A face escura reflete o desejo de viajar em busca dos encontros e desencontros desta vida.

Não é um dia como qualquer outro. Sob o calor de junho, ando em direção ao Centro da Cidade, rumo à Estação João Felipe. Estou perto de realizar um fato inédito nestes meus 20 e poucos anos: passear de trem.

O medo me possuí. As mãos trêmulas não se acalmam, o semblante tenso só me angustia. O tempo parece não passar.

O relógio marca 9h25. Falta ainda 35 minutos para partir. Sento-me, então, ao lado de uma senhora, que vela o sono de sua filha pequena. Os toques com que balança o carrinho de seu bebê me cativam. Em frações de segundos, recordo a minha infância, que tão docemente disse adeus. Lembro-me do colo de minha mãe, onde descansava; dos beijos na face de meu pai antes de dormir; dos sinceros e verdadeiros abraços. Cenas atordoam a mente... Saudade.

Ao observar o gesto materno daquela mulher, me aproximo. Um certo diálogo acontece. Entre lágrimas e risos, descubro mais uma história, no mínimo, interessante.

Há cerca de 10 anos, a comerciante Lucimar Braga freqüenta a Estação João Felipe.
Acompanhada da caçula Maria, de apenas cinco meses, e do marido, ela visita seu ponto comercial. "Chego às 8h15 e vou embora à noite", conta.

Na longa caminhada e na rotina incansável, o destino se responsabilizou de tornar a vida desta cearense mais feliz. Após idas e vindas do Álvaro Weyne para o Centro, Lucimar encontrou o seu grande amor: o mecânico de portas, Antônio Pereira. "Ele sempre vinha comprar coca-cola e pizza no meu estabelecimento", revela.

O relacionamento dos dois começou por iniciativa dele, que, de maneira suave, mandava declarações para a amada. "Eu recebia aqueles dizeres dos papéis de bombom", declara a eterna apaixonada. O amor foi tão forte e arrebatador que Lucimar largou o marido para ficar com "Pereira". Juntos, eles adotaram Maria para celebrar a união e o puro sentimento que os une.

Apesar de já ter tido seis filhos, Lucimar resolveu cuidar da menininha de cabelos castanhos, que vivia em situações precárias. "A mãe verdadeira dela não tinha condições de criá-la", revela. No novo lar, a menina é tratada com zelo. "Quero dar tudo de melhor a ela, inclusive, educação", afirma a mãe-coruja.

A partir dessas confissões, a viagem passar a ter sentido. O relógio marca 10h50. O trem dá o seu sinal e avisa que não há mais tempo para espera. Corro e consigo pegar o último vagão.

Silenciosamente, recolho-me em um cantinho. Por um momento, percebo que todos os olhares me observam. Passageiros cansados, de mãos marcadas, de semblante fatigado, se perguntam: quem é essa jovem? Moradores de Mondubim, Parangaba e Otávio Bonfim aguardam o momento de chegar em suas casas.

À minha frente, está Heloísa Nobre, de 38 anos. Ela, que não desgruda dos sacos com roupas que levara para vender, mostra-me como andar de trem tem seus benefícios. "A passagem é barata, as paradas demoram pouco", conta.

O relógio pára. A viagem acaba.

Ao chegar a meu destino, os passageiros acenam um adeus... Gestos singelos que ficarão guardados eternamente em minha memória.

Em outro amanhecer, outros passageiros se encontrarão. O trem ainda será palco de muitos outros contos. O que restam são as lembranças nos trilhos... Nos trilhos de um caminho árduo, mas vitorioso. Em meio a tanta miséria e violência, é possível perceber que existem pessoas honestas e de bom coração, que lutam para melhor amanhã.

A viagem de trem é como o tempo. Repleto de idas e vindas, que simbolizam o passado e futuro. Uns partem, outros ficam. Uns se cruzam, outros se perdem. O futuro? Deixa ao acaso. É incerto demais para os planos.